Ozéia Oliveira

Ozéia Oliveira
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domingo, 31 de outubro de 2010

Eles contra nós contra eles

Uma coisa é fazer uso de um discurso sofista e conservador, dizendo que “não se pode ser preconceituoso com o preconceituoso”. Outra coisa é se propor um tratamento crítico das discriminações, sem categorizá-las identificando bons e maus de forma maniqueísta.

Os evangélicos, ou crentes como alguns preferem ser chamados, formam um grupo que tem sua própria vivência com a discriminação. Nossa cultura católica não gosta desses filhos rebeldes e taxa-os de fanáticos, ignorantes, etc. O “eu” brasileiro é homem, branco, católico e hetero, e pensa que qualquer sujeito que não se encaixa nesses padrões tem de estar à margem.

O que acontece é que as essas “minorias” exclusas, na busca por inclusão, não quebram o padrão masculino, branco, católico e hetero: apenas transgridem o que lhe diz respeito e continuam operando na lógica que lhes esmagou. Temos, assim, feministas brancas, católicas e hetero excluindo lésbicas; homens negros, católicos e heteros menosprezando mulheres e homossexuais; homens gays, brancos e católicos discriminando negros e mulheres e assim vai. Assim, embora partilhem da experiência de ser o “outro” social, todos esses grupos não-masculinos, não-brancos, não-católicos e/ou não-heterossexuais, dentro das infinitas combinações que podemos ter aí, brigam entre si por preciosismos e casualidades, sem a percepção de que continuam todos subjugados e diminuídos no meio em que se encontram. No caso dos gays versus evangélicos isso é muito mais acentuado; se nem movimentos sociais conseguem se conciliar, que dirá um religioso e um social?

Além disso, temos um fator importantíssimo que é o teor da doutrina evangélica. Num tempo em que o politicamente correto predomina e ser preconceituoso é feio, cafona, fora de moda, muitos neopentecostalistas têm uma postura de clara discordância em relação às práticas homossexuais. A polarização entre os dois grupos vem ficando ainda mais nítida com os debates no Congresso, especialmente em torno do PLC 122/06, que se na opinião de LGBTs é importante para criminalizar a homofobia, na opinião de muitos religiosos é absurda por vetar elementos constituintes do seu código de crenças. Essa questão separaria definitavamente os interesses de ambas as minorias e faria das lutas de ambos coisas totalmente diferenciadas, certo? Errado.

Acontece que a voz evangélica no congresso, ao tentar barrar medidas pró homossexuais, além de evitar o progresso dos direitos humanos no Brasil comete um equívoco ao fazer o interesse religioso pesar mais que o político na balança das prioridades. Quero dizer que esses evangélicos não podem esquecer que operam sob uma democracia liberal, e que lutar contra qualquer tipo de liberdade – religiosa inclusive, como buscam fazer com os cultos afrobrasileiros – significa lutar contra a própria, de certa forma.

É claro que é uma coisa muito séria dizer que os evangélicos têm de deixar a política pesar mais que a religião na balança de prioridades. Sabemos, afinal, que as religiões não funcionam dessa forma em sua episteme. Mas historicamente tem sido assim; as instituições religiosas vão cedendo às transformações sociais e suas doutrinas são reinterpretadas. Sabemos, por exemplo, que esses grupos evangélicos – e mesmo os católicos tradicionais – são essencialmente contra o divórcio, mas se dentro das igrejas pode-se falar bastante disso, fazer do casamento novamente um laço vitalício não está em questão em âmbito sociopolítico. Ninguém foi preso por discordar do divórcio, assim como ninguém seria preso por discordar da homossexualidade; as leis apenas buscam gantir que o direito de se divorciar e de ter relações homossexuais não fossem negados aos integrantes da sociedade em questão. E que, no caso dos homossexuais, não houvesse possibilidade de alguém difamá-los, tratá-los como doentes e promover um discurso odioso contra eles na esfera social.

Tomo como equívoco sobrepor interesse religioso a político porque sabemos que os evangélicos formem paradoxalmente um grupo político com interesses próprios no atual Estado brasileiro e ao mesmo tempo não formam grupo nenhum, uma vez que estão espalhados da esquerda à direita, com direito a boas doses de centro. Então ao mesmo tempo que alguns dizem que se deve reconhecer que faz parte do processo democrático se formar uma junta evangélica que queira lutar por seus interesses, o argumento é falho porque esses senhores reconhecem a laicidade de seu ofício e se sujeitam a jogos partidaristas que no fim das contas pouco dizem respeito a princípios bíblicos.

Fui longe, dei um nó e agora volto pra enfim ir direto ao ponto: os interesses dos homossexuais e dos evangélicos são os mesmos; a garantia do reconhecimento de sua igualdade e da manutenção de suas liberdades dentro do nosso esquema civilizacional que é a democracia liberal. O que acontece é que determinada parcela do grupo evangélico não pensa dessa maneira, querendo garantir sua primazia de seu recém conquistado lugar enquanto homens, evangélicos, brancos e heterossexuais, lutando contra os direitos de mulheres, não-evangélicos, não-brancos e não-heterossexuais. Uma prática realmente nada nobre, mas que não determina que os crentes sejam cruéis, preconceituosos ou maus.

O que luto contra é uma perspectiva dualista, de que os evangélicos são os piores inimigos dos gays. Não o são, e pensar assim é uma coisa muito séria, muito feia. Evangélicos não são animais estúpidos e fanáticos. Talvez alguns sejam, mas alguns LGBTs também o são. Em verdade, é bem mais possível que um evangélico trate bem a uma lésbica do que uma pessoa que declaradamente “adora gays”, porque não só esse discurso de “adorar gays” é totalmente homofóbico como os mesmos evangélicos que pregam a homossexualidade como antinatural também pregam a solidariedade e o amor. Deve se considerar ainda que muitos desses crentes, por mais que na igreja sejam coniventes com certos tipos de discurso, não necessariamente compactuam com eles na prática e nem mesmo percebem isso. Não há que se rotular todas essas pessoas e presumir que elas pensam e vivem a religiosidade da mesma maneira.

Sou contra o preconceito contra evangélicos porque sou contra qualquer tipo de preconceito. É problemático assumir uma premissa como “aquilo no que eles acreditam é errado” porque é circular. Enquanto um diz que é errado ser algo, outro responde que é errado acreditar em algo. Cada surdo gritando sua verdade para fazer-se ouvir mais alto. Lutar pela garantia dos direitos humanos é lutar pela liberdade de opinião, e como venho enfaticamente falando desde o início do texto, isso é algo prezado por ambos os grupos. É claro que a linha entre a opinião e a difamação é tênue, coisa que todo esse debate em torno da lei da homofobia deixou bastante claro, mas antagonizar não é solução.

Atribuir a evangélicos o papel de nossos maiores inimigos é análogo a tapar o sol com a peneira. É mais confortável e mais fácil, afinal, apontar como opositor um pequeno grupo que declaradamente não gosta de homossexuais do que a grande maioria (inclusive a própria “comunidade gay”), cujo preconceito ganhou tanta malandragem que sabe até mesmo se disfarçar de progressista e pró direitos humanos. Não digo que não se deva brigar com a empreitada esquizofrênica dessa bancada no congresso e nem que não seja nítido o quanto pastores como Silas Malafaya promovem o preconceito. Apenas que não está nessas atitudes a origem da repressão a LGBTs, e que lutar SÓ contra elas, ver nelas o grande X da questão, é ilusório. E é, além de tudo isso, reafirmar um preconceito de origem católica. E entrar de vez na corrida maluca em que as minorias, preocupadas demais com a sua fatia do bolo, não se importam com todas as outras que também querem comer.

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